sábado, 25 de junho de 2011

Resumo:

Conhecimentos escolares e a circularidade entre culturas

Maria de Lourdes Rangel Tura
Professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


                A teoria curricular tem problematizado as formas de transmissão, apropriação e legitimação dos conhecimentos escolares e são entendidos como vinculados a uma visão particular de mundo, fortemente impregnada de crenças, afetos, valores, ideais, expectativas e relações de poder.
            A autora insere, neste contexto, uma discussão na dinâmica da interação de diferentes padrões e lógicas culturais que se comunicam no interior do espaço escolar e, para tal, traz a valiosa contribuição dos estudos de Carlo Ginzburg no campo da história da cultura.

A cultura popular e a cultura erudita

            Carlo Ginzburg tendo se beneficiado da convivência em um ambiente de encontro entre diversas civilizações, calçou seus estudos históricos no caldeamento de influências, trocas e confrontos entre culturas que se comunicam e se comunicaram naqueles espaços. A literatura, as lendas, a narração de festas populares deram forma as bases para a compreensão da forma como se processa a interação entre culturas, o que na atualidade tem despertado bastante interesse nos estudiosos do assunto.
            As questões que moviam esse estudioso da história da cultura eram as relações entre a cultura das classes subalternas e a dominante. Descartava a possibilidade da existência de idéias ou crenças originais elaboradas pelos grupos dominados. Caberia indagar se a própria cultura popular existia ou se ela era apenas um simulacro de baixa extração da cultura dominante.
            Em dimensões históricas, há uma dificuldade especial de estudar a cultura popular que se instituiu basicamente pela tradição oral e por seus poucos produtos literários –almanaques, narrações de literatura de cordel, etc – os quais parecem ser o reflexo de um saber simplório ou simplificado imposto às classes populares.
            Em outro sentido, há quem entenda a cultura popular como original e autônoma, baseando-se na premissa da criatividade popular, que, no entanto, não deixa muitos vestígios porque é produzida pela tradição oral.

A escola como local de circularidade entre culturas

            Para analisar a questão da circularidade entre culturas no espaço escolar, o autor relata uma algumas situações que presenciou quando esteve observando o cotidiano de uma escola pública de ensino fundamental (RJ). Ele observou, nesta escola, um grande preconceito contra o aluno ou a aluna que morava na favela. Em decorrência deste e outros problemas, se construíam os mitos escolares do “aluno-problema” ou em “situação delicada”. Podia-se observar ali a efetividade de uma cultura própria somente daquela escola. Havia um costume sancionado e legitimado. Era uma escola barulhenta (segundo a supervisora), e esta disse que não aguentava mais tanto barulho. Mas o barulho que a supervisora não suportava mais ouvir identificava os estudantes da escola com uma série de riscos e ameaças de transgressão, com os comportamentos inadequados, com atitudes irreverentes e com gostos pouco favoráveis à disciplina do estudo, como indicaram Giroux e Simon (1994).
            O formalismo descrito e a rigidez das relações sociais não impediram que os sujeitos educativos encontrassem formas de expressar suas idéias, valores, crenças num complexo de situações, interdições, deslocamentos, adaptações que dava sentido à sociabilidade construída naquele local, caracterizado pela heterogeneidade cultural própria da amálgama de conteúdos oriundos do intercâmbio entre as diferentes tradições culturais e os novos símbolos trazidos principalmente pelos canais eletrônicos e de comunicação.
            Essas constatações tornam possível estabelecer um paralelo entre a cultura escolar e a cultura dominante, como estudou Ginzburg. A cultura docente, integrada às identidades plurais dos professores e professoras da escola, se pautava muito fortemente nos códigos da cultura escolar. Os estudantes deixavam relevar, por suas atitudes e modos de ser, uma visão de mundo própria das culturas populares.

As disciplinas escolares e a circularidade entre culturas

            A discussão sobre “o que deve ser ensinado nas escolas” envolveu diferentes abordagens da teoria curricular e encaminhou o entendimento do currículo como uma  construção social permeada pela lógica da organização e estratificação social e das relações de poder. A tradição que instituiu as grades curriculares e o forte valor simbólico conferidos aos conhecimentos escolares exigiu a criação de rígidos mecanismos de controle daquilo que envolve sua transmissão e assimilação, e estes se constituíram em múltiplas formas, tradicionais ou atualizadas de normatização dos currículos.
            No desenvolvimento do currículo escolar, se incorporam novos conhecimentos e reelaboram saberes em redes de significados que têm seus sentidos, lógicas e técnicas sendo construídas em lugares, por vezes, diferentes daqueles da cultura escolar. Ou seja, em torno das diferentes disciplinas ensinadas e aprendidas no colégio, novas regras são estabelecidas, comportamentos determinados, normas organizadas, valores aferidos e elementos de diferentes culturas postos em contato.
            Corazza (2001), ao analisar as subjetividades produzidas pelo currículo retoma essa discussão na perspectiva das teorias pós-críticas, que distinguem o currículo como uma linguagem dotada de significados, imagens, falas, posições discursivas e, nesse contexto, destaca que nas margens do discurso curricular se comunicam códigos distintos, histórias esquecidas, vozes silenciadas que, por vezes, se iniscuem com o estabelecido, regulamentado e autorizado. Por isso, é nas suas formas lingüísticas que o currículo se faz e, ao fazer-se, produz idéias, práticas coletivas, subjetividades e particularidades atinentes ao tempo e lugar onde se fala.
            Voltando à escola que foi lócus da investigação do autor, ele traz um acontecimento que ilustra bem a interação entre as culturas que comunicavam no seu interior.

Num conselho de classe, houve um momento em que a professora de Ciências das quintas séries relatou longamente sua inquietação a respeito das dificuldades de aprendizagem dos alunos e alunas. Para exemplificar o que dizia, procurou, entre as provas que tinha em cima da mesa, uma que estava separada das outras. Então, colocou seus óculos para ler e, satisfazendo as expectativas de quem a ouvia, fez a leitura da resposta que um aluno deu à prova bimestral. Ele escreveu: “o cuidado com a terra exige sinceridade”. As professoras fizeram um longo silêncio e se entreolharam. O que o aluno queria dizer com aquilo? Estranho! Como? Como apareceu aquilo ali? Melhor dizendo, por que o garoto redigiu sua resposta daquela forma? De onde veio essa “sinceridade”? De onde veio esse relacionar com a terra tão pessoalmente? Que idéia!
            Os mestres e mestras estavam perplexos. A professora de ciências afirmava que não poderia ter dito nada de parecido com aquilo em suas aulas. “Sinceridade” no trato com a terra não estava certo. Ou será que estava?
            A proposta curricular, a sequência de conteúdos, as etapas de aprendizagem, os métodos didáticos não dão indicações sobre como agir numa circunstância dessas. Corazza, destacando o currículo como uma linguagem, afirmou que ele fornece apenas uma das tantas maneiras de formular o mundo, de significá-lo. No entanto, muitas outras visões, sentidos, significados, práticas coletivas e sociais se imiscuem no que foi enunciado e se expressam para além do planejamento curricular como outro discurso, diferente do oficial. A “sinceridade” havia proposto par aquele grupo de professores e professoras uma indagação. Não era nada que ficaria perdido. A “sinceridade” era um sinal das influências recíprocas entre diferentes culturas, tempos históricos e espaços sociais estratificados; da existência de múltiplos significados que circulavam naquele ambiente escolar não homogêneo, mas híbrido e plural.

            O acontecimento acima descrito ilustra a convivência de diferentes lógicas e modelos culturais e as formas como elas interagem e se cruzam em uma intertextualidade que produz um discurso sincrético e especialmente rico em modulações.

Considerações finais

            Pensando no acontecimento que colocou em cena a professora de Ciências, o que se pode perceber é que se está diante de uma situação atual, que se desdobra da rede de significados e da multiplicidade de sentidos que envolvem os conhecimentos escolares ou que se está diante da constatação de que os conhecimentos escolares não são meros objetos manipuláveis e transmissíveis como uma realidade física ou algo externo àqueles que o possuem (Gimeno Sacristán, 1995).
            A noção de circularidade entre culturas permite, portanto, explicar situações como vimos uma neste texto e que falam de um cotidiano escolar por vezes intrigante ou pouco compreensível. Ginzburg alertou para a impossibilidade de se pensar a autonomia de qualquer cultura, assim como negou a passividade dos grupos subalternos.
            Enfim, com assento na cultura escolar e diante de um poder cada vez mais difuso e de identidades fragmentadas, a noção de circularidade entre culturas retoma a análise das estratégias de dominação e de resistência, o discurso da hegemonia e contra-hegemonia e propõe um sujeito educativo que é, ao mesmo tempo, criativo, híbrido, reativo e construtor de significados. Um sujeito que, diante da dominação, inventa o riso, faz a comédia, apela para o grotesco e, às vezes, produz a tragédia.

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